A Galeria Virtual do Post-Screen Festival 2014

A Galeria Virtual do Post-Screen Festival 2014 – FBAUL Novembro 2014

por Diogo Freitas da Costa

Em lugar algum

O certame organizado pela secção de Ciberarte do Centro de Investigação-  e Estudos Belas Artes (CIEBA) –  Post-Screen Festival 2014 – apresenta-se como a 1ª edição de um Festival Internacional de Arte, Novos Media e Ciberulturas. Para o efeito, Ana Vicente e Helena Ferreira (CIEBA-FBAUL) conceberam um programa que se desdobra num conjunto eventos de natureza diversa – workshops, conferências e exposições – a decorrer simultaneamente na Faculdade de Belas Artes de Lisboa durante o mês de Novembro. Embora querendo aqui cingir-nos à vertente expositiva deste festival, estaríamos a omitir um dos seus aspetos mais relevantes, e até a desvirtuar a própria experiência dos trabalhos reunidos, se não tomássemos nota da abrangência de um festival que, a par de uma vincada aproximação dos meios académicos e artístico claramente apostada na transdisciplinaridade e transnacionalidade – reunindo investigadores e artistas de várias universidades nacionais e internacionais – deve ser entendido, antes de mais, como um evento integrado e construído numa lógica de networking.

Confrontados com o conjunto de obras realizadas no âmbito de um festival como este, explicitamente centrado na “questão da utilização de ecrãs e o seu impacto no pensamento contemporâneo”, é importante começar por ancorar os seus desígnios numa tradição mais abrangente, e assim evitar deixarmo-nos naufragar no jargão tecnologista que inevitavelmente rodeia a chamada “arte digital”, e cujo efeito mais perverso pode ser o de camuflar ou confundir o potencial valor artístico da obra em questão. De resto, talvez seja a esse efeito de fetichização que se possam atribuir as conotações negativas com que parte importante da crítica contemporânea tem encarado a arte produzida no terreno dos meios digitais, como lamenta Josephine Bosma  (http://www.josephinebosma.com/web/node/98), aludindo a autores como Bourriaud; Foster; Jameson; Krauss; Virilio ou Rancière.

A consciência do ecrã enquanto dispositivo que medeia a experiência estética retirada de um objeto artístico pode fazer-se remontar ao lendário episódio, segundo o qual Parrásio de Éfeso, no século 4aC., terá pintado uma cortina que levou o seu rival Zeuxis a querer afastá-la para ver o que escondia, acabando por “descobrir” apenas o seu engano. A noção de que o médium interfere ativamente na própria perceção do fenómeno artístico, e por inerência sobre a realidade que aquele quis representar, não será exatamente um dado novo. Na história das artes visuais encontramos inúmeros momentos em que a introdução de dispositivos técnicos e tecnológicos vieram confirmar e atualizar esse dado. E de facto, especificamente no que se refere à ideia de “ecrã”, é impossível não pensar nas sucessivas abordagens ao plano pictórico – desde a “janela” renascentista à grelha modernista, para não falar, evidentemente, de toda essa revolução que a fotografia e o cinema vieram introduzir neste domínio. A esse propósito, lembramos que em 2014 celebrou-se o quinquagésimo aniversário da publicação do livro de Mashal Mcluhan, Understanding Media, obra que se assumiu como marco inaugural do debate em torno da própria ideia de comunicação numa era de mediatização, na qual o ecrã tem vindo a assumir um papel cada vez mais preponderante. Os ecrãs de hoje trazem consigo a promessa de envolvência, inteligência, interatividade; atributos com os quais se pretende dar ao espetador um simulacro perfeito de realidade. Dito de outro modo, os ecrãs da era digital enaltecem a possibilidade de uma vivência virtual, omnipresente mas ao mesmo tempo ausente, como observa Paul Virilio, informada mas ao mesmo tempo alienada, monitorizada mas ao mesmo tempo cega.

Nesse sentido, a opção dos curadores de “montar” a exposição numa galeria virtual é inquestionavelmente uma forma eficaz de nos situar, enquanto espetadores, frente ao tema do “ecrã”, configurando desde logo uma pista importante para a sua problematização numa época em que, quer se queira quer não, os meios digitais estão irreversivelmente estabelecidos no panorama das artes plásticas. A galeria virtual em que se alojam as obras dos autores incluídos nesta coletiva, estabelece desde logo uma condição prévia, ligada à subversão das coordenadas espaciais e temporais que convencionalmente determinam a montagem e fruição de uma exposição num espaço físico, servindo como dispositivo de ativação de todo o um repertório temático e conceptual.

Antes de mais, a galeria virtual deste Post-Screen Festival tem o efeito de tornar o ecrã visível. Não será esta afirmação uma mera banalidade se pensarmos que um dos grandes objetivos da indústria da tecnológia áudio-visual, tem sido justamente o de criar aparelhos que pelo seu desenho e atributos técnicos permitam uma experiência em que o ecrã se torne cada vez mais um elemento invisível, imperceptivel ao olho nu. A visibilidade ou invisibilidade do ecrã, torna-se patente em muitas das peças da exposição: Encontramos trabalhos como Researching the Eichman trial (session nº 01), de Kineret Lourie, ou Resolution Transformation de Laurus Edelbacher, que evidenciam essa moldura visual mediante o recurso a múltiplas projeções ou a ecrãs divididos; outros que fazem uma utilização de cariz cinematográfico, mais próximas do enquadramento, ou “janela” tradicional como All that is Solid Melts into Data (Boaz Levin e Ryan Jeffery); e ainda outras assumindo a eliminação da moldura, como no hipnótico God, the Devil in the Detail.

Mas talvez seja preciso voltar a recuar no tempo para encontrar aquela que na minha opinião continua a ser uma chave mestra para compreender a extensão das transformações que os desenvolvimentos tecnológicos introduziram na arte feita no último século, e nas quais uma exposição como a que nos é trazida pelo Post-screen Festival, está evidentemente implicada. Refiro-me ao texto clássico de Walter Benjamin A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, escrito em 1936. Não por acaso o título já foi inclusivamente readaptado ao contexto dos meios digitais, e rebatizado como A Obra de Arte na Era da Reprodução Digital (título de um ensaio de Douglas Davis, publicado na revista digital Leonardo (Vol. 28, No. 5).

Muito resumidamente, o texto de Benjamin descreve os efeitos que os avanços nos processos de reprodutibilidade tiveram sobre o conjunto de características até então consideradas inerentes ao objeto artístico – a unicidade, originalidade, proveniência – que garantiam alguns dos valores que lhe eram essenciais – como seja a ideia de “autenticidade” – e que constituíam aquilo a que Benjamin apelidou de “aura” da obra de arte. Benjamin conclui que as novas transformações convergiam precisamente para a degradação dessa aura graças, entre outras coisas, à sua capacidade de depreciar a “presença” do original; pôr em causa a autoridade do objeto físico da obra; substituir características de permanência e unicidade, pela transitoriedade e reprodutibilidade. Benjamin vaticina ainda algumas das consequências – por vezes paradoxais – desta verdadeira revolução para a arte, entre as quais a irreconciliável aproximação do espetador face aos novos modos que a arte tem de se lhe apresentar e a alienação em que paralelamente o induz face a realidade que o rodeia.

Nessa perspetiva, é inquestionável que as obras de arte digital como as que nos traz o post-screen festival, ainda estão a participar nesse movimento de progressiva dessacralização da obra de arte de que os falava Benjamin, agora elevada muito para além da questão da mera reprodutibilidade. Confrontados com obras como A Particular Nowhere de Sterling Crispin, que reclamam para si a consumação dessa desintegração do objeto de arte, a pergunta que se nos coloca hoje é a de saber até que ponto isso não implica necessariamente também a anulação do espetador?