Exposição «Tesouros Submersos do Antigo Egipto» – Museu da Cidade, Pavilhão Branco, Campo Grande, 245, Lisboa – 7 Dezembro – 22 Fevereiro 2015
por Cláudia Ramos
Fig. 1 Sem título, 2008. Frasco de Vidro, areia, ouro e mármore -pormenor Fotografia Pedro Tropa
Notas para um desenho
“Levado pela minha desejosa vontade, vagueio para ver a grande cópia das várias e estranhas formas feitas pela natureza artificiosa, retorcendo-me ainda mais por entre os sombreados escolhos, cheguei à entrada de uma grande caverna, ante a qual, fiquei assaz estupefacto e ignorante de tal coisa, os meus rins dobrados em arco, e posada a mão cansada sobre o joelho, e com a direita fiz sombra às pestanas baixas e fechadas; e continuamente dobrando-me aqui e ali para ver se dentro se discernisse alguma coisa; e isto vetando-me a grande obscuridade que lá dentro havia. E tendo estado <assim> demoradamente, súbito crescem em mim duas coisas: medo e desejo: medo pelo ameaçante e escuro antro, desejo de ver se lá dentro houvesse alguma coisa milagrosa.” (Leonardo Da Vinci, Código Arundel 155 R. in Desenho / A Transparência dos Signos de Pedro A.H. Paixão)
Tesouros Submersos do Antigo Egipto, TSAE, resulta de um registo alargado que recorre a variadíssimas técnicas e não se prende a uma disciplina em concreto. Encontramos neste lugar o território da escultura, mas também o da pintura ou da fotografia. O que está no esqueleto deste processo, neste ato de constituir, é o desenho. Desenhar é por excelência o campo do pensamento.
O trabalho de Francisco Tropa tem em si a importância do tempo no fazer, o tempo que permite a construção de um corpo de trabalho complexo e vasto. Em 2008 TSAE teve a sua primeira revelação ao público, levantando o véu daquilo que Francisco Tropa denominou de uma arqueologia ficcionada.
Aquilo que agora nos chega de TSAE revela-se por entre uma suposta arquitetura. Um mapa assinala um lugar específico, composto por sucessivos níveis aos quais pertencem os objetos ali expostos, como se pertencessem a um espólio que é ali revelado.
O lugar evocado parece situar-se nos nossos antípodas, transporta-nos para aquilo a que podemos chamar de um antigo templo, uma caverna enigmática onde das sombras brota a luz, figurando uma qualquer intenção mágica. O artista explora diferentes núcleos como a Parte Submersa, a Câmara Violada sugerindo um espaço parcialmente pilhado, a Terra Platónica revelando-se como um lugar intocável, suspenso no tempo, e o Poço que sugere uma outra passagem para possíveis campos desconhecidos. Deixando em aberto, a possibilidade de um novo momento, que nos revele o que ainda está por descobrir. A obra de Francisco Tropa assemelha-se a um desenho em constante movimento, um desenho que busca por um hipotético final, mas sem que nunca chegue a ele, até porque provavelmente não há onde chegar.
Dentro de cada um dos núcleos, objetos. Muitos destes objetos, organizam-se em dicotomias, como os desenhos de areia. São desenhos que emergem do negativo sob a forma de estruturas geométricas, que surgem por entre o vazio dos corpos de madeira desenhando sobre a mesa a primeira das dicotomias: o positivo e o negativo. Também o rei e a rainha se impõe, mas desta, sob a forma de vidro soprado e nomeados pelo próprio artista, já o macho e a fémea surgem em peças de madeira desenhadas e talhadas para um determinado sistema de encaixe, sublinhando assim, o que tem sido uma constante ao longo do trabalho do artista: o masculino e o feminino. A morte é outra constante no seu discurso, uma das preocupações estruturais que define o Homem e que tem uma relação intima com a arte. Impõe-se entre os símbolos e a matéria, com referências ao Purgatório ou ao Inferno, presente nos intervalos entre a convivência de épocas e na fragilidade real ou induzida nas suas peças.
Ao longo da exposição, mapas vão pontuando as salas que visitamos, mapas que nomeiam e referenciam esse outro lugar evocado e que inclusive nos interpelam com possíveis pontos de vista, afinal as questões da visualidade nunca são livres do nosso corpo, do espaço que ocupamos, da nossa posição num determinado campo cognitivo, a dada altura na Câmara Violada Francisco Tropa aponta ao espetador pontos de contemplação, conduzindo assim o campo visual de quem contempla a sua obra. Ainda na Câmara Violada encontramos uma mesa onde se apresentam quatro frágeis caixas de latão. Estas sugerem processos naturais de desgaste, colocando em confronto a questão da permanência em contraponto à sua aparência que induz a uma inexorável degradação. Estaremos aqui perante a questão do tempo e inevitavelmente da morte. A mesa é uma figura recorrente no trabalho do artista, é um território de ação, que assegura a elevação de matérias aparentemente periclitantes. De passagem pelo Poço visitamos o Inferno e o Purgatório, terra de sombra, onde podemos contemplar duas imagens criadas pelo artista através da luz que incide sobre o vidro soprado, projetando na parede uma micropaisagem.
Chegados à Terra Platónica, o nosso olhar é pleno de espanto, trata-se de um lugar inviolável, como se estivesse mergulhado num soporífero. Onde os objetos apresentam cores vivas, belas arquiteturas de latão e vidro colorido, serigrafias pulsantes, é um campo de transcendência.
Francisco Tropa, tem na natureza do seu ato criativo, uma relação privilegiada com os jogos da imaginação. Tesouros Submersos do Antigo Egipto é o fruto dessa imaginação fortemente marcada pelo uso de códigos e processos artísticos, algum deles declaradamente duchampianos. Também Raymond Roussel e Julio Verne emergem do mapa de referências do artista, assim como as relações encriptadas com a matriz judaico-cristã da cultura ocidental, presentes através de conceitos como: céu/terra; alma/corpo; purgatório/inferno.
A cosmologia platónica é outro elemento de constituição da sua linguagem, seja através das palavras, seja através das imagens.
É a criação de um complexo universo, aquilo a que assistimos, um universo onde o léxico que o compõe passa por conceitos como alegoria, tempo, cinética, cenário e encenação, memória e convocação, a luz, o divino, o celestial, o sagrado e o fúnebre, tudo isto emana do seu discurso, encontramos inclusive o gesto originário, no gesto de polvilhar com areia da praia as formas geométricas de madeira, revelando assim assombrosos desenhos duma frágil beleza.
Na obra de Francisco Tropa não há um dentro e um fora, há uma cosmologia. É um lugar de desenho, de pensamento, onde se transfigurem as coisas em seres e universo. Tesouros Submersos do Antigo Egipto é esse estado de transgressão.