André Príncipe – Antena 2

Exposição Antena 2 – Galeria Pedro Alfacinha – 21 Novembro 2014 – 7 Fevereiro 2015

por David Gonçalves

É na recente inaugurada galeria de fotografia Pedro Alfacinha que ocorre o regresso do fotógrafo, cineasta e editor André Príncipe (Porto, 1976) às exposições de fotografia, desde a última, em 2006. Artista de mil ofícios estreou recentemente, no Cinema Ideal, Campo de Flamingos sem Flamingos e comemora cinco anos desde a criação da sua editora de livros de fotografia na companhia do fotógrafo José Pedro Cortês, a Pierre von Kleist.

Se na obra de André Príncipe o público está habituado a um padrão narrativo e documental da viagem e à imagem em movimento então, esta exposição coloca de lado esse paradigma para ensaiar um conjunto de imagens autobiográficas, registadas de 2012 a 2014, a partir de duas experiências pessoais. A distância que o público tem com as imagens bem como os diferentes níveis de intimidade vão intensificando-se à medida que as observamos numa espécie de atlas, defendido fortemente pelo artista, onde qualquer referência territorial torna-se inexistente mas, é possível verificar diferentes experiências e expressões.

Antena 2 é um palco de combate indefinido que revela a harmonia desconcertante de imagens, que circulam a um ritmo constante, esboçando se em distintas direcções. É perante este cenário que a estação de rádio pública entra como o complemento musical, ideal para um relato de duas experiências de quase morte que o fotógrafo sentiu nos últimos três anos. A primeira remonta a 2012, o artista vivia numa caravana e estava a viajar pelo País; a segunda, em 2013, numa cozinha, no centro da cidade de Lisboa. Em ambas as vezes despertou e voltou para a realidade enquanto um rádio imperturbável, a partir da sua trincheira que não fora afectada pelo tempo, o posto de rádio da Antena 2 estava sintonizado e audível. É esta experimentação de susto, de uma quase morte que é revelada, confronta o espectador através de imagens que vêm de todas as direcções, como se testemunhassem a abertura de uma porta do tempo; assim o artista desafia o public para se enquadrar no papel de explorador do ambiente que ele próprio criara, na procura de entender o território, das imagens e, sobretudo, das histórias. Este lado de explorador implicará uma estranheza perante um terreno que é visto como a primeira vez.

Este posto de rádio é considerado pelo artista como o “último reduto cultural” do Serviço Público onde a Cultura predomina em vez do actualizar constante e agressivo de temas como o desemprego, a instabilidade social, a crise, o programa de ajuda financeira, ou seja, longe do país real em que as notícias são dadas num tempo curto e numa forma deturpada. Numa luta contra estes poderes maliciosos e dramáticos nascem as imagens como se fossem gritos de esperança.

Neste universo alternativo surge uma dissidência entre um novo mundo e o mundo conhecido como o real, um esquecimento, propositadamente assumido, de restrições e leis que impeçam o progresso para o exterior dos confinamentos e barreiras que nos tentam regular, no dúbio processo de construção de um idealism visto como um modelo de perfeccionismo.

Assumindo uma posição clara de protesto perante a ideia de independência “distorcida”, da qual somos bombardeados no quotidiano pelas instituições e poder, o fotógrafo orquestra um registo visual numa prática diária que relata as relações que estabelece com as pessoas, os animais e as coisas. O automatismo do gesto de fotografar nasce destas múltiplas ligações que são estabelecidas tendo em conta, também, o modo como os corpos e as figuras se moldam perante um espaço em constante mutação. É nesta mutação que o artista constrói o discurso narrativo de tudo aquilo que se apresenta como livre sem esquecer a mortalidade e o caricato daquilo que observa.

Tudo é apresentado como prova documental. Existe espaço para os amigos, o urbano, os animais e momentos de confraternização, sendo que estes se suspendem e congelam no tempo. Desde a rebentação das ondas assemelhando-se a uma porta entre o mundo do artista e o mundo real sendo que esta estivesse para lá do horizonte, a rapariga totalmente despida que se seca perante uma bacia antiga num canto do quarto numa prática improvável nos dias de hoje, o homem sozinho sentado no banco da paragem do autocarro, até às raparigas no sofá como quem lembra um olhar retrospectivo ou uma revisitação que nunca deve ter fim. Esta última imagem das jovens reunidas tem uma escala que capta de imediato a atenção, bem como todo o

momento que ali se passa. Um convívio normal entre um olhar atento, uma expressão de sorriso e a distração de quem perde o olhar no chão, um copo em cima de uma perna, o cigarro e a garrafa que existem nos gestos de uma jovem, não há espaço para a solidão e as três jovens habitam o espaço à sua maneira como se tratasse de qualquer espectador na companhia de amigos mesmo sem que haja o devido conhecimento do motivo que as leva a estar na sala, bem como a história que cada uma delas tem. E o que será delas depois de tomarem a bebida e abandonarem aquele espaço? Nada disso importa, o relevante é o que se passa naquele instante, naquela recordação de adolescência, em que todos estiveram juntos no mesmo lugar.

A invocação da figura da mulher é uma constante, com um papel de destaque, revelando a importância que o artista lhes atribui. Outra das suas imagens, com uma jovem num ambiente de festa num bar e que aparenta estar no fim da idade da adolescência; de cigarro e copo na mão sugere que chegou à pouco tempo. De cabelos longos, olhos azuis e um ligeiro afastamento dos lábios, esta observa na direção do espectador com um olhar penetrante, como se dialogasse em silêncio um interesse misterioso perante quem a observa e exigisse um momento de reflexão perante a confusão em seu redor, dela e de quem a observa nos olhos.

Por detrás de cada imagem existirá, sempre, uma diferente melodia da estação de rádio pública: melodias trágicas, cómicas, alegres, saudosas, deprimidas, nostálgicas. Cada música é uma emoção e uma história, cabendo ao espectador construir uma sequência lógica de forma a criar um ritmo próprio, para assim, compreender e rever-se no ambiente originado por estas imagens que nada trazem de novo a não ser um reconhecimento daquilo que se deu e quis eternizar na memória. Deixá-las cair na indiferença ou no silêncio é como se o rádio tivesse, por fim, deixado de tocar e a morte finalmente se desse num último e derradeiro ato de vitória.