Nikias Skapinakis – Paisagens Ocultas

Nikias Skapinakis – Paisagens Ocultas – Pintura 2014-2016 – 7 Maio a 11 Junho 2016 – Galeria Fernando Santos, Porto

por Fernando Rosa Dias

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Dominada por uma série de pinturas intituladas Paisagens Ocultas (2014-2016), acompanhadas por uma série de guaches Lago de Cobre (2015), seguindo a mesma linha, esta exposição coloca-nos perante o extremar de uma ideia de pintura pura, sobretudo quando avaliada no percurso de Nikias Skapinakis. Esse percurso sempre se jogou na tensão entre a representação e a construção da pintura, tem colocado historicamente o pintor em contraponto irónico de figurações em tempos de modas da abstracção e de pendores abstractos em tempos de retomas figurativas; mas, nesse contra-ciclo, Nikias sempre foi preconizando as coisas representadas, sejam referentes concretos ou aludidos, a uma passagem para o quadro enquanto transferência. O quadro era sempre assumido como um lugar próprio onde o mundo, ao para aí se transportar e expor, ao se tornar pintura, se transfigurava e até manipulava, obrigando a uma densificação da sua significação, ou seja, em que a pintura não recebia apenas o mundo porque lhe produzia sentidos nessa transferência – e isso definia uma contumaz profundidade e responsabilidade cultural que entendemos assumida no interior do exercício da pintura de Nikias. Perante esta nossa leitura desse percurso de pintura com mais de sessenta anos, o que significa agora esta oscilação para uma pintura pura em Nikias Skapinakis?

O nosso primeiro esforço de resposta surge por contraponto à mais recente série marcante elaborada por Nikias Skapinakis: os Quartos Imaginários. Surgida em finais do século anterior, mas certamente a mais relevante da sua produção deste século, que era também a mais densa culturalmente, nos riscos com que o pintor assumia e concentrava num interior pintado uma manancial de homenagens culturais pessoais, uma espécie de enciclopédia privada de afinidades electivas culturais. Será este contraponto que pode justificar que esta exposição de pintura pura tenha um complemento nas salas finais, e eficazmente intimista, com obras da série Quartos Imaginários – já várias vezes expostos na Galeria Fernando Santos. Entre as pinturas destacava-se uma recente e inédita, dedicada a Almada Negreiros. Esta última obra da série sofria um efeito de cartazismo, brincando com o nº3 de Orpheu e reduzindo a textura da matéria pictórica que dominou nesta série.

Este contraponto entre as séries (Quartos Imaginários/Paisagens Ocultas) são relevantes para uma espécie de entendimento de termos de funcionamento de Nikias Skapinakis. Nos Quartos há uma densificação de referências culturais, de um jogo semântico que pesa em cada elemento figurado. Nas Paisagens Ocultas domina a pura visualidade, num decantamento de referências. Nikias sempre circulou, numa ambiguidade própria à pintura, entre estas dimensões antagónicas, normalmente a funcionar no interior dos próprios quadros, mas aqui querem confrontar-se como séries limites e em sequência. Deste modo, na sua mais recente pintura, e após várias décadas em que marcou a história da pintura portuguesa, o pintor apresenta duas séries que separam ou extremam uma dicotomia que o seu trabalho parecia antes misturar e concertar. Assim, o pintor abre com esta paisagem uma distância interna, sobre o seu próprio trabalho, no seio da qual uma espécie de ironia subtil se parece dispor. Neste diálogo em contraponto, agindo no interior da própria exposição, a pintura pura já está envolvida noutro jogo sem deixar de o ser, ou seja, nem a pintura, por maior densidade de conteúdos que a preencha, deixa de ser pintura; nem a pintura, por mais pura que pretenda ser, pode evitar ter conteúdos pela força cultural de ser pintura – portanto, há sempre paisagens ocultas.

Procuremos agora aproximarmo-nos desses trabalhos de pintura pura às quais o pintor chamou de Paisagens Ocultas. O próprio título da série é outra finta irónica à pintura pura. As pinturas desta série apelam visualmente a anteriores séries de teor abstactizante do pintor, onde a paisagem era uma espécie de referente, mais ou menos aludido, numa falsa representação que o pintor denominou de «para-figuração». Mas aqui o pintor leva mais longe, ou torna mais claro, um princípio: Não há paisagem prévia e referencial. Trata-se de, com a consciência da sua própria pintura de paisagem (aquela que pintou ao longo da década de 1950 e parte da 1960, ao sabor de um lirismo expressionista que preconizava), mas de uma paisagem que o olhar desoculta da pintura. O referente é que se vem reconhecer na pintura, e de modo residual, obrigando ao trabalho activo da imaginação no seio da visão. Segundo Nikias o «seu desenho sinuoso devolve à pintura a recordação da paisagem oculta na estrutura abstrata do quadro, impedindo-­‐a de se comportar como não‐figurativa». Não havendo uma origem referencial anterior ao quadro, então a alusão da paisagem é produzida apenas através da pintura, a partir da sua construção, e activada apenas perante o nosso olhar. A variação da pintura descobre-se nessa desocultação, onde vibra e pulsa a sinuosidade da paisagem, por exemplo, como uma sucessão de dunas e colinas.

Noutro jogo com a própria obra, em modos que costumam fazer parte dos processos de Nikias, as Paisagens Ocultas recebem a lisura do cartazismo de famosas séries anteriores, tais como Para o Estudo da Melancolia em Portugal ou Seduções de Zeus. Essa «memória cartazista», na expressão de Nikias, procede de um puro jogo de sucessão de cor. Aqui já não há a autonomia da figura delimitada pela fina e precisa linha e a tocar os quatro limites do campo enquadrado, mas o sulcar da linha que atravessa o campo visual subdividindo os campos de cor.

Por isso, uma primeira dimensão decisiva da elaboração plástica destas paisagens é a da linha negra que separa essas zonas de cor, tal como afirma Nikias em breve texto para esta exposição: «A linha negra, que recorta os planos cromáticos, varia de espessura, engrossando e estreitando ao longo do seu percurso». São jogos de linhas que o desenho explora, uma sinuosidade que sulca e divide o campo visual. Evitando definir qualquer campo de superfície circundado, e que se imponha como «figura sobre fundo» (lembramos o clássico estudo da psicologia da percepção de Rubin, sobre a relação entre figura e fundo), a linha atravessa o campo visual para intersectar os limites da moldura em dois pontos, raramente se fechando sobre si. Assim, a linha atravessa e sulca, deixando ritmos de passagens, como vagas modeladoras do campo visual. Este desenho puro, que nada prefigura, actua como puro grafismo que na simplicidade estudada adquire a (aparente) frieza do design gráfico.

A divisão interna é sempre em sete partes, não iguais mas equilibrada – e Nikias avisa que o 7 «não tem qualquer significado místico», mas uma pura «divisão abstractizante» que condiz com essa vontade de despojamento, um puro exercício formal do pintor. As sete cores podem ser puras, como neutras ou dessaturadas, com a sua gama de castanhos que parecem subtrair-se das cores puras. O princípio é que as cores em cada quadro são sempre diferentes, havendo sempre uma diferenciação de cada tom que preenche as áreas entre as linhas. A sucessão do preenchimento dessas sete cores lisas vão ocupar todas essas áreas divididas pelas linhas, explorando contrastes na sucessão de estrias cromáticas. Deste modo, o contraste cromático anima o ritmo sucessivo das ondulações e vice-versa. Tanto no percurso da linha como na cor que vai ocupar cada área subdividida, pressupõe-se uma variação infinita que sublima a exclusividade de cada pintura.

A cor lisa estende-se na memória do cartazismo pop, mas nem sempre com o mesmo cromatismo, devido a esse jogo de castanhos de diferentes derivações por crise da saturação, como também sem qualquer elemento pop figurado – mas como um cartazismo sem figura.

A mão age estendendo a cor, mas ao mesmo tempo procura a lisura que a nega, num gesto que afaga a gestualidade. O que fica é a cor estendida. A cor propaga-se e termina no limite imposto pela linha negra e os limites do quadro, de modo que cor e ritmo (num puro ritmo modulado da cor) conjugam-se numa «essência» fragmentária (enquadrada). A interrupção e o inacabamento, das linhas e das cores, vincam uma separação «essencial» entre o que é «pintado e não».

As paisagens ocultas parecem ampliações e fragmentos das Paisagens Mirabolantes de Nikias, tornando-se mais lentas que estas no seu jogo de sucessão, presas ao corte das linhas no enquadramento que as estabiliza. A figura escapa, não se cerca, nem muito menos se constitui: no percurso anterior de Nikias parece funcionar algo entre a lisura fixa das figuras de cartazismo e a sucessão ondulante das Paisagens Mirabolantes, no sentido em que as primeiras fogem, sem chance no processo operativo; e as segundas tornam-se vagas lentas, suspensas no seu devir. Nas Paisagens Ocultas tudo de move em particular e tudo se fixa em geral, numa diferença entre o que se passa na sinuosidade de cada elemento e na fixação do quadro – e, pegando numa velha e esquecida dicotomia do escultor e teórico Adolf Von Hildebrand, entre uma visão óptica, longínqua, unitária e simultânea e uma visão táctil, próxima e feita da sucessão de elementos em contraste que requerrem o movimento do olhar.

Este jogo de Nikias Skapinakis com a pintura pura decide-se no modo reduzido dessas modelações plásticas, numa simplificação que as concentra. E é isso que permite o jogo duplo com os referentes de paisagem oculta. Esta é uma pintura que encontra o seu próprio âmago antes de ser signo de algo. Se considerarmos que a obra de arte em geral não é redutível a uma dimensão de «signo», ultrapassando-o fatalmente – recusando o confinamento à eficácia da função do «signo» – aqui essa ultrapassagem acontece antes de chegar a ele. A paisagem não é o que a pintura quer, mas antes uma modulação plástica própria. A referenciação da paisagem só surge depois por invocação, após a pintura, como que emergindo apenas na percepção dessas animações plásticas – antes, está oculta.

«A arte – visual, literária, musical – não serve só para inquietar, ou provocar, mas também para encantar, divertir e apaziguar» (Nikias Skapinakis)