Do Desenho e do Ordenar do Tempo: Catarina Patrício e Emília Nadal na Galeria São Mamede / Catarina Patrício – Two days before the day after tomorrow / Emília Nadal – O Tempo e a Forma – São Mamede – Galeria de arte, Lisboa – 26 Maio 15 – 23 Junho 15
por Cláudia Simenta
No espaço de traça pombalina da galeria de São Mamede, em Lisboa, dá-se o encontro fortuito do desenhar de duas artistas. Emília Nadal e Catarina Patrício apresentam-nos as suas propostas cujas fundações assentam em diferentes conceitos de tempo e da passagem deste. Falam-nos de um tempo por vezes lento, por vezes acelerado; de um tempo vivido ou simplesmente intuído; de um tempo que se prolonga ou que se perde. Falam-nos do ritmo do tempo, do ritmo do mundo.
Catarina Patrício apresenta-nos desenhos de grande formato de uma figuração por vezes hiper-realista, por vezes apenas esboçada; ora constituída a partir de um registo de grande expressividade gestual, ora a partir de uma extrema contenção e economia de meios. A grafite é o material dominante, sendo o desenho pontuado, aqui e ali, de aguadas de cinzentos, de subtis pormenores de cor, ou de zonas vincadamente definidas (até violentamente cortadas) por recurso a um exacerbar da técnica do claro-escuro.
«Em cada desenho uma série de linhas se cruzam, criando uma efabulação permanente. O método que preside a estes efeitos é difícil de apreender. O interesse de Catarina Patrício pelo cinema ressalta do cinematismo contido, prestes a explodir em cada uma das imagens, quase todas “desviadas” de filmes cuidadosamente escolhidos, de cineastas como Kubrick, Dreyer, Tarkovsky, Muybridge que surge insistentemente nesta série.» (José Bragança de Miranda, “A Linha da Terra” in O Resto e o Gesto: Desenhos para o Século XXI, Fundação Côa Parque. 2014)
Os desenhos de Catarina Patrício partem quase sempre de uma imagética cinematográfica que nos é reconhecível, que nos é familiar. Contudo, o processo de execução que utiliza remete-nos, segundo José Bragança de Miranda, autor do texto da exposição, para a técnica do cut-up de Burroughs e Gysin, através da qual ela cria uma nova narrativa (a sua) a partir dos estilhaços daquela que lhe deu origem. Ela fragmenta, destrói, quebrando as linhas de associação que ligam os momentos temporais da narrativa original, para a seguir proceder ao acoplamento de uma nova imagética, de uma nova simbologia, desenhando uma linha (outra) de associação na reconstrução de uma nova narrativa.
«De facto, cortar as linhas de associação que criam as estórias repetitivas e tristes que caraterizam história, implica antes de mais revelar a própria linha, dar conta da sua necessidade. Mais ainda, é evidente que desde que se trace algo, que se junte seja o que for, se recompõe a linha, ou se descobre que a linha está ao trabalho, inexoravelmente. […]» (José Bragança de Miranda, “A Linha da Terra” in O Resto e o Gesto: Desenhos para o Século XXI, Fundação Côa Parque. 2014)
«Tudo se joga no ordenamento do tempo» conforme referiu Paul Virilio em entrevista à revista Cahiers du Cinéma e é nesse reordenar do tempo que Catarina Patrício constrói as suas narrativas. Bill Viola fala-nos, a propósito da sua obra, da pouca fiabilidade do vídeo, enquanto instrumento de registo da realidade, precisamente por conferir uma certa maleabilidade ao tempo, por permitir trabalhar o tempo. Da mesma forma, nas obras de Catarina Patrício o tempo é igualmente algo de maleável, moldável, passível de ser distendido ou comprimido; o tempo dobra-se sobre si mesmo, inverte-se, reflete-se, desdobra-se numa simultaneidade de eventos que acontecendo na mesma temporalidade, ocorrem, contudo, em espacialidades diferentes.
Outra das premissas do trabalho de Catarina Patrício encontra-se relacionada com o desenvolvimento tecnológico global e o impacto deste no Homem e na Humanidade. Interessam-lhe as contaminações multidirecionais que envolvem a arte, enquanto forma de expressão, o cinema, enquanto delineador/criador de narrativas, e a tecnologia militar (a guerra), enquanto potenciadora do desenvolvimento da arte e do cinema.
Uma das suas grandes preocupações é, assim como para Paul Virilio, a utilização da tecnologia enquanto forma de supressão do corpo, de anulação da corporalidade, de alteração do espaço geográfico em todas as suas escalas. Contudo, e de acordo com a visão de Simondon, a libertação do homem poderá, pelo contrário, passar precisamente pela libertação da máquina se pensarmos que o trabalho que hoje consideramos como “libertador do homem” – as denominadas “manualidades” – foi outrora trabalho de escravos.
Numa das obras patentes na exposição somos confrontados, pela artista, com a questão: Et ta délivrance? A pergunta leva-nos a refletir sobre se serão as máquinas a razão da nossa moderna escravidão ou se, pelo contrário, serão a razão da nossa tão desejada liberdade? Fica a questão…
Diferentemente do que acontece com Catarina Patrício, o tempo de Emília Nadal é outro. Longe da velocidade tecnológica da máquina, longe da loucura da urbanidade e do tempo acelerado da denominada modernidade, Emília Nadal permite-nos respirar propondo-nos um tempo de reflexão, de contemplação.
Na exposição “O Tempo e a Forma” apresenta-nos desenhos-calendário, metamorfoses do natural que decorrem num tempo próprio da Natureza, um tempo do qual nos encontramos privados pela velocidade que nós mesmos imprimimos à nossa vida.
Emília Nadal já não se rege por esse andar (ou correr?) do tempo. O seu tempo, hoje, é o da contemplação, da observação, do ver. José-Augusto França, no texto que redigiu para a exposição fala-nos, a propósito do desenhar de outro artista, que este «andava cansado da imaginação e apetecia-lhe uma humildade que não tinha». E, de facto, é situação que muito bem se aplica aqui. A ironia social de outros tempos deu lugar à poética da sinceridade e da paz de espírito, do virtuosismo do saber fazer que se verte para representações da Natureza e de «raminhos floridos», para uma organicidade contemplativa, que resulta em reinterpretações de calendários, estações, metamorfoses, da passagem do tempo.
As razões desta mudança de paradigma residem unicamente no pensar da própria Emília Nadal, permanecendo para nós desconhecidas, mas poderemos sempre especular e referir, como Helena Osório no seu artigo sobre a exposição, que tudo isto acontece porque «banhados pelo panorama selvático de um mundo pleno de violência e de injustiças, os artistas repensam o passado, o presente e o que se avizinha, mercê das conclusões que destes se retiram».
Assim, podemos concluir, que caberá agora a outras gerações (como a da Catarina, porventura?) a incumbência de reordenar o nosso tempo, de encontrar novas formas de nos reestruturar enquanto indivíduos, novas formas de “arrumar” a casa. Porque, com diz José-Augusto França, «assim também vai a poesia, vivida e entendida, que ao artista humildemente apetece, sem dar satisfações a quem de coisas mais vistosas, de brochas largas ou formas encarrapitadas» e, tratando-se Emília Nadal de um muito estimado pilar da nossa Arte Portuguesa, com contas saldadas, provas dadas e objetivos cumpridos, apetece-lhe agora apenas e só contemplar a Natureza; e eu atrevo-me a acrescentar: só, porque sim.