Carla Cabanas

Exposição «A Palavra Arquivada» – Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa – 19 Dezembro 2014 – 14 Março 2015

por Rita Branco

A Palavra Arquivada é o álbum número seis da série O Que Ficou Do Que Foi criada por Carla Cabanas (Lisboa, 1979). Desde o passado recente de 2010, a imprecisão da memória e a inevitabilidade do tempo são aspectos fundamentais no trabalho que a artista tem vindo a desenvolver na forma de colecção de imagens. Em 2013, os conjuntos de fotografias deram lugar a conjunto de postais e é agora, na sua mais recente exposição patente no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, até 14 de Março de 2015, que a intervenção manual deixa de o ser, aperfeiçoando a sua precisão com a introdução do automatismo do recorte a laser.

Recordações com um século de idade fechadas em pequenas vitrines, proibidas de repente ao total esquecimento, paradas no tempo que as foi consumindo. Os postais provenientes da colecção pessoal da artista e do acervo do Arquivo Municipal de Lisboa, datados do início do século vinte, são testemunhos de um passado quase esquecido de pessoas que não sabemos quem são. Uma e depois outra e depois outra. Com a curadoria de Sofia Castro, este caminho de vitrines iluminadas, montras de histórias das quais já há um muito que não se sabe mais contar, apresenta-nos uma continuação do que tem vindo a orientar o percurso artístico de Carla Cabanas: a perda da memória e a passagem do tempo pelos documentos e imagens. Ao longo desta sua série mais significante, onde a artista tem vindo a intervir sobre a imagem sobretudo fotográfica, aquilo que o tempo transforma em ausência é tornado visível através dos pedaços que são directamente apagados do suporte, seja ele qual seja. A imagem ganha a vida que só a própria vida tem e torna-se representação do que só a vida é.

Desta vez, é a partir da palavra desaparecida que somos confrontados com a impiedade do tempo que, sem nos dar tréguas, vai distorcendo e destruindo o que da vida foi guardado. Mas o que dantes era riscado é agora cortado, retirado, fazendo com que o vazio atravesse o papel, atribuindo-lhe uma nova tridimensionalidade. A pequena sala do Arquivo Fotográfico está cheia de memórias, mas termina aí a diversidade: as várias peças são todas diferentes, mas sempre a mesma. É à média luz que os mostruários parecem também funcionar como caixas-fortes, protegendo da contínua ruína a beleza das delicadas peças que lembram, sozinhas, algo frágil e susceptível. Mas a susceptibilidade vai para lá da forma destes objectos tornados imaculados. É nos postais escritos, meio de comunicação também ele perdido no passar dos dias, que vamos aqui procurando o que ficou do que foi. Uma cidade de partida, outra de destino. Uma data, talvez. De um lado texto apagado, do outro imagem cravada com a memória do texto apagado e, a seus pés, os vestígios do que dali foi eliminado com um recorte cirúrgico só conseguido à maquina. O que se perdeu de orgânico no trabalho da artista, ganhou-se em pormenor, mas se há coisa que não faz parte do universo da memória é a precisão. O mesmo tempo que nos consome e faz morrer, transforma o que guardamos em recordação, em pequenos pedaços de uma trama que deixamos de saber de cor. Não escolhemos lembrar, não escolhemos esquecer. A definição perde-se, a lembrança torna-se turva, o que era um todo fica a ser em bocados. É a distância temporal que nos afasta daquilo que já não é e tudo possui em si mesmo a fatalidade de vir a não ser: o que é transformar-se-á sempre no que foi, o que foi passará sempre a não ser mais. Nos álbuns anteriores, a intervenção de Carla Cabanas era manual. Não deixando de ser precisa, não era exacta. O traço cru e destemido, de linhas não direitas, anunciava o que foi esquecido sobre o que ficou, da mesma forma que o tempo apaga sem pedir permissão. Mas nesta sexta vez de O Que Ficou Do Que Foi, as palavras que contam as vidas quase esquecidas de quem não conhecemos, vão caindo, uma por uma, desaparecendo da superfície que outrora julgou ser para sempre e que foi assim transformada numa história sem história.

Os postais de agora, tal como as fotografias de antes, simbolizam a tentativa de tornar imortal o que sabemos ser efémero: a nossa realidade. A partir deles e ao longo dos últimos anos, a obra em construção de Carla Cabanas tem vindo a explorar a criação de outras dimensões através da destruição da já existente. Em constante desenvolvimento, esta série não falhou nunca na revelação de que a transformação a que o tempo nos condena é inevitável.