Exposição retrospetiva – Centro de Arte Manuel de Brito – Algés – 26 Set 14 > 15 Set 15
A Cura – Operação ao cérebro – Galeria 111 – Lisboa – 15 Nov > 31 Dez 14
por Claudia Simenta Rodrigues
«[O medo] acompanha-me a vida toda. […] aos poucos, ele instala-se e não o consigo mandar embora. Tenho medo, tenho medo. […] Fujo do medo, mas é ele que me faz pintar e ser quem sou da forma que sou.» – Fátima Mendonça entrevistada em entrevista à 30 Dias|Oeiras.
Há precisamente 50 anos que Fátima Mendonça opera (com) o medo. Desde sempre o sentiu. Sempre esteve presente de uma forma ou de outra. O medo como base da construção humana, na sua mais extensa indefinição, enquanto criação de uma realidade/fantasia infantil. Fátima sempre teve medo. Medo de um todo indefinido, grandioso, castrador, visceral.
Foi nas Belas-Artes de Lisboa, através da pintura, que Fátima Mendonça encontrou forma de lidar com esse medo; um medo que, por todas as razões que lhe são intrínsecas, é criador e criativo e que se permite ser transposto para a tela em emaranhados difusos (e confusos) de linhas, redes, tricotados, contornos, cromatismos vibrantes e palavras. Muitas palavras.
O universo de Fátima Mendonça desenvolve-se na confrontação entre o imaginário da infância e a realidade da idade adulta. A sua obra é por isso invenção, fantasia e ironia, denotando, na sua construção, uma forte ligação à casa e à vida doméstica e o recurso a uma simbologia que lhe é muito própria e à qual recorre com frequência nas suas representações.
No Centro de Arte Manuel de Brito apresenta-se assim uma exposição comemorativa dos 50 anos da artista, composta exclusivamente por obras da coleção da instituição, que sendo uma coletânea extremamente relevante da sua obra, permite-nos ter a perceção do que foi o seu percurso até hoje.Através de séries como A casa do desarranjo, Eu tenho medo; lá, lá lá, lá, lá…, Para te fazer não tem nada que saber, Assim… assim… assim… para gostares mais de mim, Para Cegar o Medo, Casa-Carrossel, entre outras, é nos apresentada uma evolução iconográfica em crescendo, cada vez mais exarcerbada, que é representativa dos estados de alma da artista, mas que nos toma também a nós, espectadores, e nos contrai sobre aquela que é a nossa própria realidade, ao ponto de quase nos sentirmos implodir.
Subitamente, contudo, retornamos ao ponto de partida e apercebemo-nos que estivemos sempre a caminhar em círculos, dando voltas e voltas num emaranhado obsessivo de pensamentos, sentimentos e sensações, que constroem uma narrativa (a narrativa da vida real/ilusória de Fátima Mendonça), de representação simbólica muito própria, construída nos ambientes domésticos já anteriormente referidos. Nestes espaços encontramos meninas de corpos desengonçados e frágeis, bolos e doces, coelhinhos, toureiras em lutas cruéis de arena, jaulas com meninas-mulher de saltos altos e corpos dilacerados e feridos; tudo elementos que habitam o universo construído de Fátima Mendonça.
«[…] o sentimento é sempre o mesmo […] O que me levou a pintar os primeiros trabalhos a escuro que se vê no CAMB é o mesmo que me levou a pintar os meus últimos trabalhos. É o mesmo núcleo. É como se fosse o mesmo cheiro. É sempre o mesmo sentimento, sempre.» – entrevista à 30 Dias|Oeiras.
As obras presentes na exposição do CAMB são quase todas de grande dimensão, podendo ser feito o paralelo ao modo de construção do nosso próprio pensamento: a sua dimensão resulta da justaposição de várias telas de menores dimensões – fragmentos do pensamento – que só depois de unidos compõem o todo que é o modo de pensar e sentir de Fátima Mendonça.
Numa das salas centrais surgem-nos quatro telas gigantescas, que ocupam todo o espaço e o fecham sobre nós. Sentimo-nos invadidos, tomados pelo mesmo medo que ao longo dos anos tem amedrontado a artista. Somos, assim, forçosamente transportados para o seu universo e obrigados a ver o mundo pelos seus olhos (ou forçados a ser alvo da observação dos inúmeros olhos presentes nalguns dos seus trabalhos).
Percorrendo as salas de exposição do CAMB, constatamos que cada obra não se finaliza na sua última pincelada; esta dá o mote para a próxima obra que irá nascer e assim se cria a narrativa que caracteriza o trabalho e o universo da artista. O seu trabalho é homogéneo; aqui tudo se inter-relaciona, tudo está conectado. Apesar da aparente incoerência (para muitos loucura) que possa ressaltar da sua obra, Fátima Mendonça é uma mulher extremamente coerente no discurso que nos apresenta; na sua obra tudo bate certo, tudo encaixa. Não é uma pessoa de ocultações; tudo o que pensa, tudo o que lhe trespassa o íntimo é transposto para a tela.
«Defendo-me muito pouco, confesso que não sou uma pessoa de grandes tapumes.» – entrevista à 30 Dias|Oeiras.
Nos seus trabalhos a tónica não se coloca tanto ao nível da técnica ou do modo de representação. Muitas vezes o desenho, de carácter recorrentemente infantil, extravasa os limites do suporte, e aquilo que nos é dado é apenas uma pequena parcela do pensamento compulsivo da artista. O que é verdadeiramente relevante é o grafar desse pensamento no suporte e a rapidez com que o mesmo é transposto para a tela; quase como se a artista sentisse uma necessidade premente e constante de purga, de purificação do seu corpo de impurezas ou matérias indesejáveis (o medo). Neste contexto, as palavras que se inscrevem na tela resultam de uma escrita automática; são ladainhas, preces a que a artista recorre para exorcizar esse medo.
A exposição do CAMB encontra-se, no entanto, incompleta. Para assistirmos ao culminar de todo este processo, temos que forçosamente nos deslocar ao número 113 do Campo Grande, à Galeria 111, espaço com a qual a Fátima Mendonça mantém uma relação de grande proximidade deste que começou a expor os seus trabalhos, no início dos anos 90.
Aqui somos convidados a assistir ao processo de “Operar o medo”. A exposição A Cura – Operação ao cérebro, com trabalhos de menor dimensão, apresenta-nos a operação à cabeça de artista com o objetivo de acabar de vez com a presença deste medo irracional e extemporâneo.
Desta feita, o suporte utilizado é maioritariamente o papel, numa aparente sugestão a um conceber de um projeto de intervenção “médica” (se assim lhe podemos chamar) e não tanto a uma representação da operação em si; trata-se da planificação da intervenção a realizar.
Aqui e ali, surge-nos uma ou outra tela, explanando de forma mais concisa a referida operação ao cérebro noticiada como a “Cura” da artista: «Procedimento experimental de recurso! 1 – couro cabeludo afastado; 2 – osso craniano cortado; 3 – cérebro à vista – exposto; 4 – cérebro intervencionado – operado; 5 – voltara a colocar a “tampa”; 6 – coser couro cabeludo; 7 – observar comportamento; 8 – Tirar da paciente o medo doentio.»
Somos então confrontados com uma série de representações de cabeças abertas, por onde vemos sair os males que afetam a artista, na busca incessante de uma cura para os seus medos. Numa das representações da intervenção é introduzida, no cérebro, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, noutra são mãos postas a rezar; tudo na derradeira tentativa de lidar de vez com este Medo, invasor de mentes e castrador de sentimentos.
Acompanham as obras mensagens como: «Tentativa 207 – O medo – Possível tratamento da Maria de Fátima», «Tirar os males. Tão amados.», «Para deitar o medo cá para fora» e «obs.: Opinião para operação pouco favorável». Estas funcionam como legendas, como descritores da obra e da intervenção que irá ser realizada.
Nesta série há ainda uma preocupação estética; a de ocultar, após a intervenção, a “bolsa tricotada” que pende do crânio e incomoda a “doente”. Para tal a artista sugere a criação de um “penteado moderno” com bolos a decorar, reportando-nos a outras obras do passado.
No fim de tudo, feito o percurso e operado o mal, cabe-nos perguntar: e agora? Que caminho poderá Fátima Mendonça seguir a partir daqui? Tudo dependerá do sucesso (ou não) da operação realizada. Contudo, deveremos ter em mente que do sucesso desta operação poderá provir o risco de extinção do motor criativo da obra artística de Fátima Mendonça – o próprio Medo.