João Tabarra – Biotope – Colégio das Artes, Universidade de Coimbra – 20 de Novembro de 2015 a 22 de Janeiro de 2016
por Rita Bernardes de Almeida Barreira
O acolhimento descentrado de Lisboa da nova exposição de João Tabarra assinala mais uma síntese do seu contínuo movimento fotográfico, distinguindo-se ainda assim com contornos diversos que provocam um ponto de ordem em relação à sua exposição antológica no Centro de Arte Moderna (2014) e à mais recente mostra da Galeria Filomena Soares com Discrepância (2014).
Se, de facto, assinalamos a continuidade formal do processo artístico do fotógrafo, permitindo-nos emergir numa linha familiar ao seu espectador atento, iremos de igual modo reunir uma experiência consistente— completa— de um programa expositivo que vive da produção e investigação artística em si, mas aqui com uma atenção específica com os referentes e tópicos gravitacionais que a compõem, materializados numa cuidadosa curadoria integrada.
Assim anunciada, a montagem dos significantes artísticos a par da narrativa curatorial que faz viver a exposição de Tabarra, é em si uma evidência que se reitera ao dia da inauguração com o lançamento do livro Biotope (Abysmo, 2015) e a intervenção pública da curadora Nicole Brenez. O livro, não o catálogo, mas o código artístico fundamental, emancipa-se na integralidade curatorial mencionada, acudindo o léxico e postulações do fotógrafo e colocando-o materialmente em relação com a filósofa Élisabeth de Fontenay – com análise própria sobre o trabalho de Tabarra (Tábula Rasa) a par de uma entrevista com Stéphane Bou onde discorre sobre a questão filosófica premente em Biotope – e com a historiadora e crítica de arte Pascale Cassagnau. A par do livro e da intervenção pública da curadora, contamos ainda com uma visita guiada daquela e do artista no final da exposição. Este programa referencial aqui detido inscreve uma agência artística e curatorial que acompanha o espectador e o convida a elaborar em comunhão – de espécie? – a narrativa viável no percurso expositivo de uma forma bastante eficaz e completa, sugestionando exatamente uma experiência de conhecimento que pontua desde logo a rede teórica que sustenta e é sustentada por Biotope.
Falamos então aqui, intencionalmente, numa primeira instância, da forma como a arte de Tabarra nos chega, por se relacionar e determinar de igual modo os significantes constituídos nas fotografias em si. Dirigimo-nos então a esta exposição como um exemplo de uma consistência distinta de outras vigentes, da relação da obra de arte com o seu espectro filosófico, sociológico e cultural dada de forma programática e evidente na exposição. O toque simbólico e material, as diversas plataformas de conhecimento, colocando a fotografia numa evidência relacional (repetimos, programada), coloca de igual modo a atividade artística como uma forma e dimensão de conhecimento hábil em relação com a ciência, a filosofia, antropologia ou a outras áreas convenientes ao código artístico utilizado.
É então que o cinema, meio completo e aglutinador de outros meios artísticos, faz valer esta dimensão completa que se nos apresenta. A curadoria de Nicole Brenez, especialista em cinema experimental, coloca em rede de tensão e significação as fotografias de Tabarra com as elaborações de Pascale Cassagnau postulante do Terceiro Cinema, que acompanha e se sustenta nos Estudos Culturais, como por fim a contribuição das teses filosóficas de Élisabeth de Fontenay, autora de Le silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité (1999). Estas, de forma sucinta, versam sobre a peculiaridade de ser um homem, ou processo que caracteriza o homem através do que lhe é característico, excluindo e polarizando negativamente tudo o que não é assente nessa tradição filosófica-cultural, nessa dimensão antropocêntrica, na defesa dos animais e da animalidade, no alargamento do espectro de compaixão e tutoria ao animal, que considera ser, a par do homem, um vivente de subjetividade absoluta de cada existência. No cerne do antropocentrismo reside porém uma tradição intricada que vive vincada nos grandes sistemas de conhecimento moderno (século XVIII) que classificaram, sedimentaram e instituíram a ideia de espécie entre nós. Na aplicação de referentes ao cenário teórico, urgem por isso as fotografias, conferindo o mote que as une como uma postulação total expositiva, e avançando neste contexto móvel filosófico, antropológico e sociológico socorrendo-se do espectador – membro de espécie e de comunidade – para a mesma, com o compasso dado do exercício narrativo. As fotografias, por isso, Biotope.
Os stills cinematográficos concretizados na autonomia de cada imagem são o enquadramento formal das mesmas, a repetição do enquadramento e dos seus componentes simbólicos sugerem o motivo e imprimem o ritmo de imagem em movimento que, especule-se, terá irrompido com notoriedade no entendimento do trabalho de Tabarra pela sua curadora Nicole Brenez e sido operado como uma montagem de filme, substituindo na sua constituição os stills por frames. A reiteração do espectro cinematográfico viabiliza-se não só pelas questões culturais fracturantes e fractais trabalhadas em cada imagem (Pascale Cassagnau) como também pela caixa de respiração que o filme Eclipse, Elisabeth Fontenay reads The Silence of the Beasts (2015) inscreve na exposição, cumprindo este ainda outro motivo: fonte de código e imagética teórica para as figuras de Tabarra. O cinema é aqui o aglutinador que forma, que dá sentido uno à integralidade atrás mencionada, não se escusando também a jogos experimentais na sua linha condutora, que avançam entre a tela vazia, mas habitada pela voz da Filósofa, até ao excesso figurativo das imagens fotográficas que indiciam um deslocamento para a tela, explanando aqui uma vez mais a intersecção material entre a arte e a filosofia—desta vez—, remetendo-nos uma vez e outra para o Terceiro Cinema.
A classificação moderna é, por via de Fontenay, aqui pensada como o ponto de força da composição fractal de cada fotografia. O motivo formal dos stills indicia o espectador num sentido final do seu conjunto, mas opera simultaneamente o ritmo do processo narratológico. Aqueles são pausas, técnica recorrente no trabalho do fotógrafo (veja-se a sua exposição antológica Narrativas Ausentes), que se alia à dimensão ou grande escala da fotografia em relação com o observador (em Biotope as fotografias variam desde os 150 x 150 cm até aos 180 x 225 cm). Atada à pausa e à escala insurge a composição e significação das imagens em si, desta forma emergindo nos stills cinematográficos, retomamos o ímpeto classificativo que consideramos latente à composição imagética das fotografias de Biotope. A entropia dos objetos significados nas imagens denuncia o objetivo maior de os definir – redefinir – relacionando-os, extraindo-se a potência classificativa de cada um, conferindo luz às problematizações e questões levantadas pelo fotógrafo, filósofo e arqueólogo. Nesta lógica iluminadora, ao invés de iluminista, João Tabarra, nas fotografias Intégration du Vivant, Intégration du Vivant, movement 1, Intégration du Vivant, movement 2, assim como em Masque sous camouflage, recorre à imagética do gabinete de curiosidades, viabilizada pelo uso dos animais taxinomizados, numa sugestão de museu que reitera a agregação e conservação de conhecimento passivo, evidenciando simultaneamente a objectificação das espécies outras que não a humana.
A figura do fotógrafo nestas imagens vem conferir uma observação subjetiva que no entanto não conduz a imagem, não a domina, apenas a habita em inquirição. Esta ausência de domínio da figura humana inscreve-se em pormenores que se concretizam na iluminação privilegiada da múmia na fotografia Integration du Vivant, como também na escala reduzida da figura humana – ou primata – face ao esqueleto completo do dromedário. A fotografia Simulacrae executa-se mais completa no universo da taxonomia e classificação de espécies, pela longa quantidade de múmias destacadas no centro da imagem enquadrada por vitrinas esterilizadas, científicas. Montras sistemática de espécies distantes, extintas talvez, onde a ciência (as várias) se mostra inoperante face à catástrofe da morte, da extinção. A figura do artista vem aqui uma vez mais imprimir a meta-reflexão da sua própria eventual extinção nivelando as espécies díspares expostas na fotografia. Escavando-se a si enquanto espécie, inquirindo o que lhe é particular, o homem, artista Tabarra, esforça esta relação de nivelamento acima mencionada, operando uma tentativa de fuga ao paradigma antropocêntrico alinhado com a investigação de Fontenay.
Movendo-nos ainda neste campo de relação, estabelecemos as fotografias Lire ou Question Politique como sintomas de uma urgência no reposicionamento interespecial (a premissa da catástrofe já estabelecida através da taxinomia) onde uma vez mais a escala juntamente com a evidência do domínio e objectificação de uma espécie pela outra, concretizada com a “festa” da crueldade “show marinho” vêm sublinhar uma tomada de posição que o artista reivindica e que terá de partir de um exercício ontológico necessário. A classificação da espécie-humana ganha também corpo nas disfunções económicas e ambientais com origem no desenvolvimento e progresso técnico no still “Acceptation”, no qual se vê o artista transfigurado em gorila, bebendo café e lendo o jornal enquanto nas suas costas, fundo da imagem, gruas operam e carregam os navios de mercadoria, ilustrando a sociedade de consumo, e a inevitabilidade da sua perpetuação o que nos encaminha novamente para uma noção de espécie destruidora.
Neste movimento dialético entre uma ontologia da espécie humana e os fenómenos sociais decorrentes ou os fenómenos naturais concorrentes, parece o fotógrafo operar as suas composições significantes. Esta dialogia pretende ainda e como já se viu, descentrar na sua relação o humano, demasiado humano, colocando-o exatamente num ponto de tensão significativo duma figura que realiza e aproxima dois significados tradicionalmente afastados aqui figurados no homem gorila. Esta técnica moderna neoclássica de figuração, designada de anacrese ou, como dirá Élisabeth de Fontenay, oximoro, adquire materialidade na habitação transversal da figura do gorila, sendo esta tensão classificativa, simbiose de opostos significativos que servem a gravitação da narrativa completa da exposição e que se concretiza de uma forma mais clara nos trípticos Confiance, Peur e Devir e no Terroir, Passage. A exposição Biotope envia-nos por isso, e em constância, para duas dimensões que o artista investiga se separadas, dominando-nos na exposição do seu argumento: o mundo, nas suas múltiplas faces materiais ou ficções, cultura, ambiente, ciência, filosofia – ou o Outro e o ser-humano na sua eventual condição. Na relação destes dois vectores, o exercício artístico como ontologia essencial.
Esta crítica pretendeu seguir o modelo clássico oscilando entre a reportagem descritiva, neste caso mais aplicada à curadoria e aos contornos distintivos da mesma, que se alinha com uma forma de ‘curar’ integrativa de vários meios de organização da exposição, não contemplando em exclusivo as obras de arte mas sim todo o universo contextual que as compõe.
Devido ao carácter simbólico das fotografias de João Tabarra, operei aqui uma exegese iconográfica mínima colocando-a e contextualizando-a na obra assim como no contexto artístico, filosófico e social dado os significantes específicos da mesma e tentei seguir a indicação do artista e relacionar culturalmente as questões que o mesmo levanta na sua obra.
Por indicação evidente da exposição, tentou-se pautar por uma problematização filosófica, acompanhando e participando na obra do artista. Na senda da crítica enquanto instrumento divulgador, opta-se aqui também por uma posição de problematização ou de “complicação”, tendo em vista exatamente o mote filosófico conferido na exposição.